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“Eu sou um personagem”

  • Natália Vergütz
  • 9 de nov. de 2023
  • 10 min de leitura

Quem assistiu a um dos shows de Elza Soares, nos dias 6 e 8, no Teatro Nacional, com toda certeza, ficou arrepiado. O público foi do choro às gargalhadas, em um espetáculo de voz, dança, sensualidade e graça. A mulher, que nasceu em uma favela do Rio, carrega a experiência de quem foi mãe aos 12 anos, enfrentou críticas pela paixão que viveu com o craque de futebol Mané Garrincha, que durou 20 anos, foi lavadeira e operária de uma fábrica. Elza deu muitas voltas por cima, ganhou, em 2000, o título de melhor cantora do milênio, pela BBC de Londres.


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Elza Soares - Foto: Natália Vergutz

Durante o show, em Brasília, Elza relembrou o início da carreira, quando, ao se apresentar no programa de Ary Barroso, a platéia começou a rir, assim que ela entrou. O apresentador, que de início não deu muito crédito à cantora, chegou a perguntar o que era aquilo, se era um ET. “Eu pesava uns trinta e poucos quilos, como qualquer criança que você vê na rua, tinha o cabelo alisado pelo que a gente chamava de pente quente, que chegava a deixar marcas na testa e usava maria-chiquinha”, conta a cantora, sempre de bom humor. Mas ela buscou forças, pois precisava do dinheiro do prêmio para sustentar seu filho, que estava doente. Então, no meio da música ela começou a mostrar todo o potencial de sua voz, e Ary Barroso falou que ali nascia uma estrela. Esse foi o início de Elza Soares, a embaixatriz do samba brasileiro.


Após brindar com champanhe, juntamente com a banda, Elza deu início ao espetáculo, cantando “O meu guri”. Apenas ouvia-se sua voz, e a platéia aguardava ansiosamente o momento em que a cantora apareceria. Quando ela surgiu, com um vestido vermelho exuberante, e muito samba no pé. Quando a cantora fez uma dança mais sensual, os fãs mais exaltados, gritaram: “Linda, gostosa”. Mas o êxtase do show aconteceu, quando a cantora afastou o microfone da boca, prendendo-o com as mãos nas costas, e, ainda assim, todo o público do teatro pôde ouvir sua voz, forte, aguda. Foi aplaudida em pé, e agradeceu o público pelo carinho.

A seguir, “beba” um pouco mais de Elza:


Fale um pouco sobre o novo trabalho, Beba-me


O Beba-me é um trabalho que foi feito para que eu relembrasse algumas músicas do passado, que eu já tinha gravado, e a gente fez uma releitura. Eu não queria fazê-lo, porque eu achava que, com tanta coisa nova, vou buscar coisa do passado. Mas, ele foi feito, e, em um momento em que eu não podia dizer não, era um momento em que eu estava doente, mas, que caiu no agrado de todo mundo, porque esse CD já é a terceira edição. Então, acho que valeu a pena fazer, e eu transformo esse trabalho no palco em uma alegria, é o Beba-me mesmo.


Como foi o show do último dia 06 em Brasília?


Cara, não dá nem para falar como foi. Eu sei que foi maravilhoso. As pessoas vêm aqui e saem em estado de êxtase, porque, realmente, ele (o show) é muito gostoso.


Você já sofreu racismo?


Acho que todo mundo. Mulheres sofrem racismo, gays sofrem racismo, o negro sofre racismo. O racismo está aí, na carne de todos, impregnado nas paredes, só que, ele é tão “filho da mãe”, que você não sabe onde encontrá-lo. Ele está espalhado, ele vive aí e é muito sacana, está em toda parte, aonde você chega




r, você vai encontrar o racismo. É contra a mulher, contra o gay, contra o negro, é contra tudo.


Então você acha que é um mito dizer que aqui no Brasil não há racismo?


Eu acho que no Brasil, o racismo existe, e muito mais safado. Porque você não sabe onde está impregnado, eu sei que ele está por aí. Nos Estados Unidos, onde vivi muitos anos também, você sabe onde ele está, aqui não, ele é de uma sutileza vagabunda que você nem calcula, aquela sutileza bem malandra. Ele está aí, existe muito forte, feio, chato, horroroso, canceroso.


E quanto a mulher brasileira, a senhora que morou muito tempo no exterior, como ela é vista lá fora?


Se você me chamar de senhora, como vou entrar pelada no palco? (risos). De p..., a mulher brasileira é vista como a mais vulnerável, a mais dada. Por que eles vêem de lá, a beleza da mulher brasileira, que é inigualável, mas quando ela chega lá, é tida como vadia, como prostituta. Acho que hoje está um pouco melhor, a gente já atingiu um nível bem mais alto. Mas a mulher brasileira não é vista com bons olhos.


Você foi exilada na Itália em 1969. Por quê?


Até eu quero saber por que fui exilada. Disseram para eu sair do Brasil e me deram 24 horas, para que pegasse meus paninhos e me mandasse. Eu fui para a Itália, junto com o Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, em Londres. Minha casa foi metralhada, roubaram tudo o que eu tinha.


Os artistas, em geral, eram muito perseguidos...


É, porque o artista é um perigo. Ele tem uma arma na mão, que ninguém tem, que é o microfone. Então, havia muito medo do artista se manifestar. Quando eu surgi cantando, foi com muita força. E isso, talvez estivesse incomodando, pois qualquer coisa que eu falasse seria ouvida, porque fui a única mulher que chegou aos teatros, fui atriz, fiz quatro anos do curso de direito, meu professor foi Grande Otelo. Então, eles (autoridades do governo militar) tinham muito medo que eu abrisse a boca. Acho que é por isso que me mandaram embora, porque até hoje não encontrei o motivo.


Você pode falar um pouquinho sobre o relacionamento com o Garrincha?


Ai, não (em tom melancólico), deixa ele lá, cara. (Neste momento, escuto, em coro um “não”, em tom melancólico, formado pelos amigos da cantora). Que pecado, ele vai ficar com raiva porque vai falar assim: Mulher, arranja um homem, esquece meu nome, esquece de mim, tem muitos homens por aí. O Mane foi aquele jogador de futebol que ninguém deu tanto valor, falar dele agora eu acho que seria hipocrisia de qualquer pessoa. Vamos falar da Elza, dos trabalhos, do hino que cantei no Pan, falar que ela teve uma diverticulite e estava operada (quando cantou no Pan, em 2007), parecia um João teimoso para entrar no palco. Uma coisa fantástica, porque é uma história, uma vida. Fiquei em Roma por três meses, passei por uma colostomia. Tudo isso eu passei, no palco, cantando, porque acho que se você tem força, garra e coragem, você faz. Mas, se eles me dessem um tempinho para descansar, talvez tivesse sido muito melhor. Eu tive que gravar meu DVD, porque acharam que eu ia morrer, então, por isso eu gravei o DVD assim (recém operada).


Você quase morreu nessa cirurgia...


Quase que eu fico lá, deitadinha. Também nem sabia o que era. O médico dizia que era uma diverti e eu respondia: ai, que coisa boa, Doutor. Porque eu adoro me divertir. Então, ele disse: mas vai ter uma coisa chata no meio, vai ter uma culite. Aí eu disse: Cacilda Becker! culite, agora ficou feio! (Elza brinca, muito bem humorada). Ele disse que eu tinha que operar, aí eu dizia assim: “ai now, ai now, ai now” (cantando), e ele dizia: “yes, yes, yes” (cantando). Quer dizer, foi um divertimento essa diverticulite, porque eu já entrei cantando.


O que você faria se fosse seu último dia?


Se eu soubesse, que seria o último dia, eu ia beijar muita boca, ia dar para muita gente. É o último dia, vale tudo, queria fazer tudo que me for de direito.


O seu trabalho é mais reconhecido no Brasil ou no exterior?


Eu acho que no exterior eu tenho uma porta bem aberta, mas eu sou brasileira, eu quero que ele seja aqui. E está sendo. Hoje tem um público muito jovem, não sei por que, se é por causa das pernas, por causa do corpo, ou porque ela (ela própria) é muito audaciosa no palco. Mas eu tenho uma garotada no público, o que acho maravilhoso. Já fui pedida em casamento no palco, os garotos ficam apaixonados, e eu digo: Eu só quero saber de um dia só, depois eu te mato, você não vai conseguir agüentar comigo (risos). Eu levo tudo na brincadeira, então acho que é por isso também.


O que você está achando da política atual?


Eu acho a política uma coisa muito complicada. Se eu for falar de política, eu não canto. Todos nós somos políticos. Você é política para estudar, para comer, para comprar, é tudo muito político. Então, é uma coisa de difícil alcance, na minha opinião.


Muitos artistas, como Clodovil, Frank Aguiar e Gretchen, se lançaram na política. Com a sua popularidade, você também já pensou em se candidatar?

Eu já. Mas depois eu fiquei com tanto medo, que falei eu não quero isso para mim não. Não quero porque não iam me deixar fazer o que eu quero, ia ter que entrar na panela. Eu sou muito louca, e não iam me deixar ficar nunca.


Você já foi muito assediada quando cantava em boates?


Toda hora, e eu acho isso um prazer terrível. Que venham mais, sinal de que você está viva, que está gostosa. Isso é importante, acho bom.


O público GLS tem um carinho muito grande por você. Já foi assediada por mulheres também?


Também. Eu acho maravilhoso, morro de rir.


Você já cantou, inclusive, na Parada Gay de São Paulo...


Cantei. Eu faço um trabalho muito importante no mundo gay. O gay ainda vive muito fora do texto, é um preconceito terrível que eles têm que atravessar. Então, eu faço esse trabalho, ajudando com remédio, com tudo que for possível de comprar briga por eles. Eu acho uma covardia (o preconceito). Deixa eu te falar uma coisa do mundo gay: toda mulher tem que ter um gay ao lado dela, porque eles são muito mais femininos do que nós. A gente, como já sabe que é mulher mesmo, então nem liga. Mas eles fazem uma coisa, que, a mulher que não tem um gay atrás meu amor, ela fica uma coisa meio pedreiro.


Qual foi a maior gafe que você já cometeu?


Tantas, que você nem calcula. Eu tenho muita tatuagem de rosas no corpo, que são uma representação de Lupicínio Rodrigues, é uma homenagem que faço a ele. Quando comecei a cantar, em uma boate que se chamava Texas Bar, tinha um senhor sentado, com umas rosas belíssimas. Eu fiquei com medo daquele homem me olhando, com um sorriso maroto. Ao ver que eu fiquei muito sisuda, ele se levantou, chegou perto de mim e disse assim: “Entrego essas rosas, para outra rosa”. Eu disse: O senhor se engana, não me chamo Rosa, detesto rosa. Ele me respondeu: Então eu vou lhe dizer uma coisa, você está cantando a minha música, você é Elza Soares e eu sou Lupicínio Rodrigues. Eu falei: Seu Lupicínio, porque o senhor não disse antes, meu Deus do céu!

Outra gafe foi com a Sylvia Telles. Eu estava cantando e ela passou dançando e ficou parada dançando na minha cara. Eu pensei: de homem eu corro, mas mulher, me olhando desse jeito? E eu era pura, inocente, não tinha nada a ver. A mulher me olhava torto, e comecei a achar que tinha algo de errado em mim. Aí ela me disse: “Meu amor, quando você terminar de cantar, você pode dar uma chegadinha e sentar-se conosco na mesa, por favor?”. Eu respondi: Olha, a senhora está enganada. Eu fui contratada para vir para cantar, não para sentar nesse formigueiro, nem conheço, e a senhora fica dançando e olhando para a minha cara, o que a senhora viu em mim? Ela ficou vermelha, e falou: Você não me conhece? E eu: Não senhora. Então, ela: Meu amor, eu sou a Sylvinha Telles. Dona Sylvinha! Porque a senhora não falou antes? E ela me disse Meu Deus, você parece uma leoa! Senta ali com a gente que eu trouxe o presidente de uma gravadora, que vai querer te contratar.


Quase perdeu um contrato...


Quase (Risos). Eu falei: Dona Silvinha, pode deixar que eu irei, com o maior prazer.


Sobre a queda do palco?


Caí de uma queda de três metros, no Metropolitan, no Rio. Colocaram uma luz bem grande, caí e fraturei três vértebras e fiquei um bom tempinho em uma cadeira de rodas e muito temo rolando de dor na coluna, e para os médicos não teria cura, ficaria em uma cadeira de rodas.


E o trabalho Brasil brasileiro?


É uma coisa maravilhosa, um show lotado. Foi um argentino quem montou esse show, e a gente viajou o mundo, até para Arábia Saudita. Para o Brasil não foi possível vir porque aqui não tivemos patrocínio, o que achei uma vergonha, o Brasil brasileiro, que é Elza Soares e Jair Rodrigues, Arlete Costa. O espetáculo ia ser belíssimo.


No exterior ele teve grande repercussão?


Sucesso absoluto, extrondoso. O show mostra todas as danças típicas do Brasil, o princípio da dança, que é o xote, o maxixe. A sensualidade da mulher brasileira é uma coisa muito bonita, mas para o Brasil não veio.


Atualmente, podemos perceber um embranquecimento do negro. As mulheres estão alisando, pintando o cabelo de loiro. O que você acha disso?


Eu acho sensacional, você tem direito a fazer tudo. Se as negras não pudessem alisar o cabelo, as brancas não poderiam ir à praia para se queimar, ficar coradinhas. Então, porque tem preconceito das queimadinhas, mas quando querem queimar o bumbum, ficam deitadas naquele sol quente, queimando? Vai lá, alise seu cabelo, fique nua. De repente, você pode ser a capa de uma grande revista, uma negra bonita, maravilhosa. Você não vê uma negra na capa de uma For Man, por exemplo.


Você não acha que isso está mudando um pouco, na televisão, por exemplo?


Cadê? Na televisão você encontra um, dois. Isso, para não ficar tão vergonhoso. Mas, nas propagandas, você não vê ninguém. E esse país é um país de mistura, de negros, índios, africanos, alemães, portugueses. É uma raça, que a gente é toda mistura. Mas estou com vontade de me casar com um alemão agora, sabe?


Você está de aniversário esse mês. Vai fazer uma festa?


Sei lá. Não, acho isso uma tolice (festa de aniversário). To fazendo festa quando to diminuindo um ano de vida? Todo dia é aniversário. Eu faço aniversário de dia, de noite, porque eu tenho 24 horas de vida, sempre.


Como é se ver nas telas do cinema?


São tantas vezes, já não sei mais dizer o que é. Acho que ver o fazer um bom papel, é maravilhoso. É importante, quando você vai lá, e faz o seu belo papel. Eu sei que sou um personagem. E cuido bem dele. No dia em que acabar a Elza Soares, a Conceição vai ter que andar por aí e ninguém vai olhar para ela não. Vão dizer que quando era Elza Soares era melhor, a Conceição é muito chata. Quando batem palma e dizem “ai, que lindo”, eu digo que não sou eu, é a Elza Soares. Pois, quando eu carregava lata d’água na cabeça, usava meus tamanquinhos, andava na lama, ninguém batia palma, quando entrava no trem, empurravam por uma porta e eu saía pela outra. Então, eu digo para Elza Soares: Te amo, se eu pudesse eu casava comigo, que a Elza é muito doce, ela é maravilhosa. É ela quem me dá esse prazer de viver com você.

 
 
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